segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Amélia, 54 anos.






Diagnosticada com cancro da tiróide há 4 anos, acompanhada pela equipa de ECCI, no domicílio. Solicitou acompanhamento espiritual e psicológico. Reside sozinha, nunca teve filhos e o marido abandonou-a no início da doença. Sem irmãos, sem retaguarda familiar.

“Numa sessão com o pároco:

-Sabe, eu preciso confessar-me, sinto que guardei dentro de mim demasiada revolta, as palavras doem-me e não me largam enquanto não as libertar.

-Fale à vontade (diz ele)

-Toda a vida fui ensinada a aceitar, a receber com fé o que a vida me dava, a ser respeitosa com o próximo, a ver as suas necessidades acima das minhas. Fui ensinada a não ser egoísta, a viver em função do outro.

-Essa é a doutrina cristã, meu anjo.

-Pois está mal. Arrependo-me de não ter sido mais feliz. Nunca quis ofender a Deus e ele faz-me uma coisa destas? Para que serviu a minha existência? Vida de merda.

-Sinto que está muito nervosa, os desígnios de Deus nem sempre se entendem, mas Deus escreve certo por linhas tortas.

-Linhas Tortas? Acho que são tortas? Pelo contrário foram linhas retas, sem qualquer emoção, sem qualquer sabor. Tomara eu ter partido um prato, ou a loiça toda. Nunca viajei, nunca me questionei sobre a vida, sobre as emoções. Levei uma vida sem sabor, casei com quem os meus pais indicaram, nem sei se o amei… Sabe o que preciso senhor padre?

-Diga…

-Reze por mim, mas mesmo como deve ser, porque nestes últimos dias tenho pecado em pensamentos como nunca e peça a Deus Nosso Senhor que se houver uma vida a seguir a esta, que me mantenha jovem e me perdoe mas vou querer compensar todo o tempo perdido. Se não aceitar estas condições, não vou para o Céu, prefiro o inferno.”

Ri-se às gargalhadas enquanto conta esta história à psicóloga. Escusado será dizer que o padre nunca mais lá voltou!

Foi feita a narrativa biográfica e, afinal, tinha tido bastantes aventuras. Partiu com a sensação de que validou a sua existência.

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