terça-feira, 2 de maio de 2023

Gato escondido, de água fria tem medo...



Perdoa-me C. 
Hoje confesso a mea culpa, hoje enfrento a fragilidade de ser vulnerável. Durante mais de um mês tivemos um utente no internamento que saiu hoje por transferência para aproximação a área de residência e confesso que o evitei. 
Não por ele ou pela sua situação clínica, mas pelo facto de termos idades próximas. Quando alguém nos chega em fim de vida mais jovem do que nós ou da nossa idade isso mexe com o nosso próprio sistema de defesas e confrontar essa realidade parece que torna mais visível a nossa própria finitude. Confesso que o evitava por desconforto pessoal, por sentir que o iria incomodar e por medo de me afeiçoar talvez. Das poucas vezes que o visitei fui pelo aspeto funcional saber se precisava de algo ou porque me tinham chamado para resolver questões direcionadas com a gestão e serviços. Apresentei-me como psicóloga e perguntei se queria falar mas disse-me que não tinha interesse. Que estava farto de falar. Na maioria dos dias estava adormecido e por mais desculpas que justifiquem, sinto que lhe falhei como profissional, sinto que me falhei a mim a oportunidade de o conhecer. Mas é importante ver as coisas de frente e aprender a não cometer o mesmo erro novamente. Ter a noção desta fragilidade permite-me criar as ferramentas para enfrentar esta situação e fazer com que não seja um problema numa próxima abordagem. É importante perceber o que "mexe com a gente" porque apesar dos anos e dos danos, continuamos a ser, em relação. E também nós temos pontos a trabalhar.

Coincidência ou não...




A D. Lili partiu. A avó como tantos a chamavam decidiu ascender aos céus, sim ela foi de certeza para o céu. Era muito acarinhada e amada pelos filhos e netas. Era possível sentir nas videochamadas e visitas presenciais, esse amor. Mas a sua partida foi prolongada e em câmara lenta. Durante os últimos meses faziam-se chamadas de despedida e entre os familiares e equipa tentava atribuir-se um sentido ao dia em que ela partisse. Nós humanos procuramos sempre um sentido lógico para explicar os acontecimentos e pensou-se que estaria á espera do aniversário, ou do filho que viria, ou da data em que faleceu o marido... E sempre se iam lançando hipóteses para perceber o que a mantinha aqui. 
Fizemos a despedida com a autorização de partida em que os filhos e netas a autorizavam a ir e garantiam que iam ficar bem. Mas ninguém iludia a Lili e hoje percebeu-se que eles precisavam daquele tempo para iniciar o Luto.
Afinal acabou por partir exatamente um ano após ter tido o AVC e iniciar a sua demanda. A morte não tem explicação, nem espera pelo momento.... mas talvez seja mais fácil de aceitar quando encerra em si um sentido ou apenas uma coincidência... E afinal existem coincidências!?