A minha profissão possibilitou-me estar perto de pessoas em fim de vida, que sofrem doenças crónicas e de famílias exaustas, incapazes de dar mais. Existimos para lhes proporcionar algum suporte e qualidade de vida, nem que seja na morte. E há tanta vida na morte! Tive necessidade emocional de escrever, quer porque temo perder as lembranças, quer porque são demasiado significativas para partirem, comigo, na minha finitude. Aprendi que não se deve antecipar nem atrasar a morte, mas também a vida!
sábado, 17 de junho de 2017
Teresa, 76 anos.
Divorciada, juíza aposentada. Com cancro do pâncreas, desde 2011. Internada numa unidade de cuidados continuados, de longa duração, após transferência de uma unidade de paliativos.
Pessoa consciente e orientada, na própria pessoa e no tempo e espaço, sempre com a capacidade de decisão mantida. Após alguns dias do internamento, solicitou que lhe fosse dada autorização para casar. Pedido que a equipa considerou um pouco estranho, dado que a filha (única) e neta nunca falaram na existência desta vontade.
Ao conversar com ela, digo-lhe:
-amanhã virá o funcionário do registo civil, a fim de realizarmos o seu desejo. Mas se me permite perguntar... houve alguma aproximação com o seu ex-marido, recentemente?
- não... não é com ele que quero casar, já errei uma vez (ri-se)
- então apaixonou-se por alguém?
- nada disso, vou casar com um amigo que tenho.
- a amizade também é amor...
- vou casar apenas e só para que ele fique com a minha pensão, trabalhei demais, ganho bem, a minha filha Ana não precisa que eu já lhe deixo muitos bens, ela que os venda, se quiser.
- e ela aceita?
- que remédio tem. A vida ainda é minha. Que mande na vida da minha neta Vera.
- precisa que preparemos alguma coisa?
- eu só vou assinar um papel. Não preciso ir de lua de mel, até porque provavelmente morria antes de entrar no avião.
(Rimo-nos)
- é inocência minha associar casamento e amor, não os consigo ver de outra maneira, desculpe (digo-lhe eu)
- a vida ensinou-me que nunca ficamos com o grande amor, nem poderíamos.
- porque diz isso?
- o amor distrai. Se me tivesse permitido viver o meu, não seria metade do que sou. Um grande amor não se coaduna com as rotinas quotidianas, nem às convencionais 4 paredes.
- mas viveu assim um amor?
- sim, mas amar com aquela intensidade nunca pode ser duradouro, os maiores amores amam-se melhor à distância.
Silêncio
- posso pedir-lhe um favor? ( pergunta-me ela)
- sim claro
- aquele bloco que tenho, onde costumo escrever... quando morrer quero que me prometa que o faz chegar a quem eu indicar. Vou deixar tudo preparado.
Faleceu três dias depois desta conversa, e quando abri a mesinha de cabeceira encontrei um envelope fechado, com um nome e morada. Confesso que tinha curiosidade de o abrir, mas não o fiz. A pessoa estava a cerca de 40 km, entreguei-o em mão.
No destinatário apenas dizia "para o grande amor da minha vida: Isabel"
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