A minha profissão possibilitou-me estar perto de pessoas em fim de vida, que sofrem doenças crónicas e de famílias exaustas, incapazes de dar mais. Existimos para lhes proporcionar algum suporte e qualidade de vida, nem que seja na morte. E há tanta vida na morte! Tive necessidade emocional de escrever, quer porque temo perder as lembranças, quer porque são demasiado significativas para partirem, comigo, na minha finitude. Aprendi que não se deve antecipar nem atrasar a morte, mas também a vida!
terça-feira, 25 de julho de 2017
Rita, 54 anos.
Diagnosticada há 3 anos com cancro da tiróide, após várias cirurgias, desta última ficou afásica. Emitindo um som rouco e incompreensível a cada tentativa sua de comunicar. Fez tratamento inicial de iodo e iniciou radioterapia. Encontra-se, como sempre para mais uma sessão de radiação. Emagrecida, com ar sofrido e com olheiras marcadas. Aguarda a sua vez, para ser chamada.
Era a pessoa com a palavra amiga, com o incentivo e espírito positivo. Aquela que, aos poucos, foi vendo partir os colegas que conhecera nas sessões.
Carrega um amontoado de folhas que lê com atenção, rabisca uns papéis e encontra-se concentrada na tarefa. Vem sempre sozinha, chama um táxi que a leva a casa e volta para a marcação seguinte. Sempre sozinha, não tem aliança, nunca falou na família...
Após a sua saída com ar de exausta e dolorosa, deixa sobre a mesa, as folhas que trouxera. Corre-se na esperança de a alcançar, mas já vai no táxi. Liga-se para a companhia de táxis pedindo que se coloque em contacto com o motorista. Assim fazem e ele diz a morada onde a deixou.
Alguém se dirige a essa morada para entregar os papéis e ela encontra-se na cabine da rua, ao telefone. Estranha-se porque, sabendo que ela não consegue falar, porque usar a cabine?! A pessoa espera e quando ela desliga, entrega-lhe os papéis. Rita abraça-o forte e emociona-se.
Foi a última vez que alguém a viu, Rita entregou o seu corpo ao Instituto de Medicina Legal e nessa noite cometeu suicídio. Aqueles papéis eram a formalização dessa decisão. E a chamada era o aviso para que a encontrassem. Estava tudo premeditado.
Rita queria que estudassem o seu corpo, que ele servisse a medicina e a prevenção de doenças e sofrimentos como o seu. Rita não queria continuar a viver assim, não houve funeral, não houve túmulo, nem jazigo onde apodreça, onde colocar flores. Rita está nos livros de medicina, está nas primeiras explorações e ensaios de futuros médicos, está eternizada para o sempre, não só lá, mas também aqui.
Obrigada Rita.
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