A minha profissão possibilitou-me estar perto de pessoas em fim de vida, que sofrem doenças crónicas e de famílias exaustas, incapazes de dar mais. Existimos para lhes proporcionar algum suporte e qualidade de vida, nem que seja na morte. E há tanta vida na morte! Tive necessidade emocional de escrever, quer porque temo perder as lembranças, quer porque são demasiado significativas para partirem, comigo, na minha finitude. Aprendi que não se deve antecipar nem atrasar a morte, mas também a vida!
segunda-feira, 8 de janeiro de 2018
As palavras que ninguém fala...
Morrem com algumas pessoas as memórias e as palavras proibidas, um pouco da história do nosso País. Uma história macabra e escondida, de um sofrimento que a pobreza provocou. Hoje fala-se em vítima, em carências, em dores... antigamente não se falava, tudo era normalizável, tudo era justificável. As pessoas não tinham direitos, não havia conhecimento... havia fome, havia repressão e muita necessidade que levava a que as filhas fossem vendidas "para servir em Lisboa", que as famílias fossem exploradas "para bem da sua filha, para um futuro melhor"... e o que tiveram essas filhas?! Uma vida de servidão e violência, maioria delas serviu toda a vida, as vontades e mordomias de pessoas de "classe alta", dos senhores doutores abastados.
Ouço relatos de vidas desperdiçadas, de vidas não vividas, que desde criança foram usadas a interesse de alguém "superior". Sensibilizam-me estas narrativas porque a pobreza era desculpa para tudo e estas pessoas sofreram por não ter a sorte de nascer noutro berço, as injustiças eram praticadas desde o seu nascimento. Tem sido frequente, talvez pela zona geográfica e pelas idades, relatos de casos de violência na infância e de abandono parental. As pessoas não eram educadas com amor, não havia tempo, nem dinheiro para isso. Não admira que exista tão elevada taxa de analfabetização nestas idades e principalmente mulheres. Os relatos vão desde uma criança de 7 anos sofrer a penitência de ser penduradas pelos pés, a bebés recém nascidos, que por terem alguma deficiência física, eram abandonados na floresta para serem comidos pelos lobos e vai até maridos que davam urina a beber às suas esposas, depois de um dia de lavoura sobre um sol abrasador, enquanto estes refastelavam as suas extravagâncias sexuais nas damas dos bordéis locais. Se o interior falasse... Se a maldade se aproveitou dos oprimidos...
Hoje, no leito de morte, todos se encontram, desde o mais nobre, ao mais pobre, todos terminam lado a lado, na mesma enfermaria, na mesma unidade, no mesmo lar... Felizmente hoje, todos têm acesso aos mesmos cuidados e aos mesmos tratamentos. A diferença está nas cicatrizes que o tempo e a sua vivência lhes deixou!
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