terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Permanecer...

Desligar de uma narrativa, cortar o cordão emocional de empatia e compaixão não é fácil... defendo que enquanto nos dói somos humanos, o dia que me desligar com a mesma rapidez que carregar num botão, deixo de ser humana. Mas hoje dói demais... Tinha tantas expectativas para este utente, era um senhor excepcional, de uma grandeza extraordinária. Alguém que nas sessões me despertava o intelecto, sou egoísta ao dizer que o acompanhava mais por prazer que por trabalho. Tinha tantos planos, houve dias que podia ter aproveitado mais a sua presença,  mas o tempo foi-me sendo roubado por outros entreténs. Hoje disse-me ele, "o tempo é valioso, se não for você a controlar o tempo, vai perdê-lo num instante." Tínhamos ficado de escrever um livro de cabeceira, tinha-se contactado uma companhia de teatro para que se representasse uma peça da sua autoria e surpreende-lo. Não estava preparada para o perder.
Escrevo para me analisar, pesar os prós e contras desta intervenção e "encerrar" o caso em mim, mas este senhor ficará marcado para sempre, foi uma passagem enriquecedora e que me desenvolveu enquanto pessoa. Ele de mim levará pouco, apenas a companhia que lhe fiz e alguns sorrisos que lhe entreguei. Ele gostava de falar de morte e comigo não tinha entraves nem lhe fugia ao tema, abordávamos a morte enquanto dilema de vida,  e,  se no início ele dizia ter uma angústia de morte, agora no final dizia que lhe fazia companhia, que a pedia para terminar os seus dias, não porque tivesse dores, mas porque sentia ter vivido tudo o que de bom a vida tinha,  e,  estar ali,  era arrastar os dias. Era manter-se para os outros, perder tempo...
Como forma de o compensar perguntei o que lhe poderia dar no seu aniversário, que o faria feliz? Disse-me "verde, verde, verde..." Era um fado de Amália. 



Depois disse-me que lesse o livro " A morte de Ivan Ilich" de Liev Tolstoi que iria perceber o seu modo de sentir, que quando o fizesse pensasse nele. Agradeceu-me a presença e afecto, mas mais lhe tenho eu a agradecer. Obrigada por me permanecer, por me ter permitido entrar no seu mundo interior e acima de tudo pela forma agradável com que sempre me recebeu e pelas conversas trocadas.

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