segunda-feira, 27 de junho de 2022

Eu e os eus de mim





Sei que estás, mas não estás, sei que gostas da emoção de me interromperes. Como se precisasses ter a certeza que ainda penso em ti, que ainda te amo. Não és do presente, nem tão pouco do futuro és apenas uma miragem de um passado distante. Com um toque, com um jeito fazes acordar todo o fogo que arde em mim. Não quero ser sentida por ele, queria ter mais controlo. Não te queria sentir tanta falta como sinto. Tanto arrependimento como sinto. Tanta saudade de ti. Tanta saudade de mim.

Não, não és tu. É a minha carência, a minha solidão. A necessidade de ser tão só e necessária. A utilidade do verbo ser, ter e viver. A tão fraca e vulnerável fragilidade de não ser, não ter, não viver... Sou depressiva, porque contigo ficou parte do que fui, de quem era... Tento dar mais, tento sempre tentando sem quebrar, mas quebro. Não estou bem. Mas vou aguentando.

Não fui ensinada a dizer não. Para mim que acredito em empreendedorismo, criatividade e inovação não existe a capacidade de negar a possibilidade de algo acontecer, então digo sim, eu faço, eu resolvo, eu penso, eu arranjo forma. E fico horas a mais, faço o trabalho dos outros, o meu fica para depois, e vou ao fim de semana, e limpo a casa de madrugada, assisto séries de madrugada, adormeço os miúdos, tomo banho com os miúdos, vamos a feira e levamos a vizinha e a prima e é preciso um papel e eu trato, e ele precisa de ajuda e eu vou... Até que um dia o corpo desliga e simplesmente, como se de um computador se tratasse, ele reinicia. Sim desta vez voltou, mas podia ter sido pior. O desmaio foi amparado e prontamente socorrido, mas podia não ter voltado... e essa pessoa estava a trabalhar para os outros, deixando 2 crianças por criar, um mundo de sonhos por realizar, os anos de velhice prometidos no altar e uma tristeza na família mais próxima. 

Texto sobre a dificuldade em conciliar a vida profissional com a familiar. Texto sobre uma mãe, esposa, dona de casa e diretora, psicóloga, administrativa e "faz tudo" á beira do colapso nervoso. 





O dia que o padre chorou.


Se o amor fosse uma cor, ou um desenho, um sentimento... É difícil descrever tal definição, o dicionário certamente o fará e por mais do que uma forma, no entanto eu quero falar do verdadeiro amor. Daquela sensação que se transmite nos poros da pele e que nos arrepia com tamanha imensidão. Não, não falo das borboletas no estômago, nem de uma constipação. Este é o amor de mãe e filhos, incondicional, ao ponto de fazer chorar o Sr. Padre. 

Numa das chamadas "visitas de despedida" foram contatados os familiares mais diretos para uma senhora dos seus 92 anos, linda, de pele clara e cabelos de prata. A senhora já estava na fase de agonia, com respiração mais ofegante e aguardava que seus filhos chegassem. Medicada para as dores, estava num quarto individual para dar mais privacidade a esse momento. O filho e duas filhas chegaram e subiram onde a abraçaram, beijaram e autorizaram a partir. Passado pouco tempo, uma das filhas achou que seria importante a mãe ter o seu momento de absolvição dos pecados e pediu que o padre viesse para efetuar a extrema unção. Foi feita essa articulação mas o senhor padre estava numa reunião no Município e não teria o material necessário, pelo que iria á sua residência para os buscar e assim que pudesse viria ao seu encontro. 
 

Não tardou uma hora, assim que chegou subiu ao quarto e precisamente 2 minutos antes a senhora havia ascendido aos céus. O Sr. Padre parou, respirou fundo e deu os sentimentos á família. Num ato de pura humanidade começaram a cair lágrimas do seu rosto, enquanto pedia desculpas por não ter chegado a tempo. A equipa que estava presente deu as mãos em uníssono e juntos rezamos pela sua alma. Nesse momento deixou de haver enfermeiros, cuidadores, auxiliares ou diretora... fomos todos, apenas e só irmãos. Irmãos em Cristo e em luto por uma mãe que havia partido. 

Foi um dos momentos mais marcantes que vivemos em equipa. A imagem representa o bem que pode vir das nossas ações. Ninguém sabe a dor que o outro carrega, mas até um sapato velho pode criar flores. 

Senhora solidão


É de noite, no silêncio na invasão dos pensamentos acendo mais um cigarro. Tornou-se o meu companheiro de insónias, o sopro de prazer nesta tão grande solidão. Está frio e enrolada numa manta vou a varanda... Passa um carro... Ouve-se um cão e o céu tem estrelas... É o meu momento de encontro com o universo, com o sabor do cigarro e as mãos ocupadas fico nesta dormência de um aconchego. Ajuda a passar o tempo, ajuda a que me sinta mais comigo. Faço esta pausa por prazer de um reencontro. Às vezes acompanho com um copo de vinho e parece que o prazer ganha uma luxúria. Sinto-me mais... Mais gente... Mais humana... Mais presente sem me sentir ausente.

Os meus filhos cresceram e já não me lembro da última vez que os vi, as minhas decisões foram erradas porque corri atrás de um amor, que teimava em partir. Hoje estou só, com o meu cigarro e um copo de vinho... Preciso desta "dormência saudável" para me sentir viva, mas que apague a dor de estar só. Talvez inconscientemente me esteja a castigar e a punir. Talvez inconscientemente ache que não tenho valor e o cigarro é uma via rápida para terminar esta dor. É como acelerar na autoestrada pelo prazer de correr riscos, de ser rebelde, de testar os limites do destino, ou de Deus ou do Universo.

M. F. (55 anos) internada numa ULDM com cancro do pulmão e metásteses espalhadas por todo o corpo. Recebeu o diagnóstico já no internamento. Viveu 3 meses, não voltou a fumar, pois encontrou na equipa uma família e um lar. Foi acolhida com muito amor e querida por todos. Na sua morte ficou um silêncio naquela casa. Descansa em paz ❤️