domingo, 18 de abril de 2021

Fernanda, 59 anos



Internada em unidade de cuidados paliativos, doença de foro oncológico. Esposa e mãe de três mulheres. Professora de yoga e meditação. Católica praticante, estava a rezar quando a psicóloga entrou no quarto.

-Desculpe, posso? ( Pergunta a técnica)

-sim, estou a terminar... (Benze-se e de seguida faz o sinal da cruz) pelo sinal da santa cruz, livre-nos Deus Nosso Senhor e aos nossos inimigos. 

-Pareceu-me ouvir "e aos", em vez de "dos nossos inimigos".

- Também me ensinaram que era contra os nossos inimigos, mas não me faz sentido, prefiro esta versão.

- e posso perguntar porquê?

-claro que sim. Primeiro por ser católica, acho que devemos querer o bem para o próximo. Depois, porque se eles estiverem bem provavelmente deixarão de implicar ou nos ter como foco de atenção. E, por último, se são verdadeiramente inimigos, de nada serve vence-los por estarem enfraquecidos.

-continue...

-Que serve um inimigo vulnerável e frágil? Se for para nos enfrentar que seja alguém com força e coragem. Dá muito mais gosto quando se vence alguém superior ou ao nosso nível. Ou então também se aceita mais facilmente a derrota, por uma questão de mérito.

-Bom ponto de vista, nunca tinha pensado nisso. Mas tem muitos inimigos?

-Deve haver quem me tome como tal, mas para dizer a verdade eu não considero ninguém assim... Não odeio nem desejo o mal a ninguém, de coração. 

(...)

-Você vê sempre o lado positivo- disse a psicóloga.

-Acho que essa é a melhor forma de se levar a vida. De nada servem os rancores e ressentimentos. A culpa deste cancro não foi da vida. Foi de algumas escolhas que fiz e das crenças erradas em que inconscientemente acreditei. 

-Como assim?

- Uma vez li que o ser humano é o único capaz de se adoecer a si próprio. As nossas lágrimas de alegria ou tristeza são constituídas por químicos diferentes. É tudo uma questão de controlar os químicos.

-Se fosse assim tão simples...

-Olhe que é. Seja grata, agradeça. Perdoe-se e perdoe os outros. Ame-se e ame os outros. E lembre-se de sentir. Sinta-se a si, ao mundo envolvente, aos 5 sentidos que é uma privilegiada por possuir, às emoções e ao que de mais interior e inconsciente tem. Conecte-se com a sua parte espiritual (não precisa ser uma religião, mas que seja algo de transcendente).




sexta-feira, 16 de abril de 2021

Jorge, 52 anos




Residente na zona do Porto, ex-toxicodependente de heroína, atualmente em regime de metadona. Referenciado por diabetes e úlceras de pressão, na realidade caso social. Na ULDM há 2 anos.
Chega tatuado nos braços e as mãos, com personalidade desafiante refere que as tatuagens com caracteres chineses são os nomes das pessoas que matou. Diz ter estado preso e que por alegada insanidade, associada ao consumo, foi libertado. Psicopata sem qualquer noção do outro. Diz querer sair e ter capacidade de se gerir sozinho. 
A técnica responde que tem acesso ao processo
clínico e nada daquilo corresponde ao real, pelo que o pode avaliar como desorientado, não podendo ter alta a pedido, se assim o desejar. 
Ele acede a responder à avaliação e recorre ao seu lado de manipulador. 

O problema destas referenciações é que os serviços vão passando os casos sociais de uma instituição para outra, até que tenham idade, doença ou meios suficientes para se tornarem finalmente elegíveis para uma resposta social. 
E muitas vezes tratam-se questões comportamentais e problemas sociais em unidades de saúde (física). Há necessidade de respostas que sejam orientadas para a saúde mental, que tem um vasto campo de complexidades. Estes "doentes" que são admitidos nas unidades, exigem o dobro da atenção e apesar de parecerem economicamente mais vantajosos, há toda uma panóplia de complicações que se propagam. Eles deambulam e descobrem facilmente os circuitos, horários e saídas. Eles mexem nos pertences dos outros utentes, funcionários e geram conflitos e mal entendidos que resultam da descoberta de que algo desapareceu. Eles falam com os familiares dos utentes e inventam histórias e boatos, levantando suspeitas e dando resultado a reclamações sem evidência. Eles podem abusar, maltratar ou ser agressivos para outros utentes, nos períodos de menor vigilância. E eles saem e colocam em risco toda a equipa e utentes. 

Uma pessoa com este tipo de personalidade é uma bomba relógio num local onde se prevê o internamento. A culpa não é sua, porque simplesmente está a ser ele próprio. 
Não se pode dizer que seja culpa dos serviços que querem vagar lugares, ou da inexistência de respostas, ou das profissionais que são impelidas a cumprir objetivos. A culpa morre solteira, porque os serviços não podem ser formatados e apesar de se estar direcionado para uma tipologia de clientes...  Lidamos com pessoas e sabemos que todos somos diferentes.
Por isso e apesar das dores de cabeça e estratégias que tenhamos que encontrar, temos
que ver a pessoa e tentar antecipar comportamentos ou pelo menos ir reduzindo o
risco, até que se encontre um lugar ideal... Ou a medicação ajustada...


terça-feira, 13 de abril de 2021

Dia do beijo

 


Hoje as máscaras tapam a boca, servem para nos proteger. Mas perdemos metade do emocional, as expressões, os sorrisos, os cantos dos lábios, a textura deles... Hoje não há afetos, as pessoas não se tocam, não se chegam, não se cheiram... Tenho saudades dos beijos dados, pedidos ou roubados. Do simples aproximar de dois rostos, daquele arrepio da proximidade e do primeiro contato... Beijos apaixonados, repenicados, demorados ou apenas coordenados, numa dança sensual e erótica de duas bocas que se apresentam e exploram. Tanta descoberta que fica interrompida para os jovens de hoje... Os jovens estão a ser castrados em tanto prazer, em tanta beleza, que de certeza teremos adultos recalcados e sem capacidade de gerir as emoções.  Sem praxes, sem concertos e festivais, sem viagens... apenas e unicamente teledependentes. Quem vai para a universidade e fica em casa dos pais interagindo com os colegas no computador?! É anti natura, é anti hormonal, é anti instintivo. Sei que o ser humano irá reinventar-se e arranjar uma forma, também não se tem saudades do desconhecido, no entanto, apenas posso julgar essa experiência segundo a minha existência... E fui uma sortuda, aproveitei ao máximo a minha adolescência e juventude. Beijei exatamente quem eu queria e nunca tive um beijo não correspondido. 


quarta-feira, 7 de abril de 2021

Inspira... Respira ... E não Pira!!!



A sanidade mental é algo fundamental e muito rara nos dias de hoje. Vivemos em stress constante, insatisfeitos, na correria de prazos e datas que se acumulam. Queremos fazer mais, fazer tudo e cumprir tudo, mas há a constante ligação. Vamos para casa e não desligamos a ficha do trabalho, dos utentes, dos familiares, do horário... Entra-se facilmente num ciclo vicioso de psicomania e paranóia. Se fazemos ou não fazemos tudo é motivo para se questionar. E não há horas para enviar e-mails ou mensagens, tudo se permite. A nossa liberdade e respeito perdeu o valor, tornámo-nos prisioneiros das redes sociais, dos emails de serviço e das disponibilidades dos outros. Voltámos ao tempo dos escravos, sem chicote, mas com a mesma base neurótica de controlo. No final de vida, todos se arrependem do tempo que perderam a agradar os outros, do quanto se dedicaram ao trabalho e do quanto abdicaram de si mesmos, dos seus familiares e dos seus prazeres.

Hoje o dia estava prazeroso, ameno e confortável, o fim do dia brindou-nos com um por-do-sol rosáceo e laranja. Fui com os miúdos dar uma caminhada. Não houve telemóveis, não há emails noturnos, não posso permitir que ninguém interrompa o meu silêncio e o tempo dos meus filhos. Depois de os adormecer voltam os pensamentos e as tarefas agendadas, às vezes também respondia a e-mails mas vou parar de o fazer. O que é do trabalho terá que permanecer no trabalho, só assim se mantém alguma sanidade mental.