quinta-feira, 22 de junho de 2017

Alberto, 57 anos



Cancro do pulmão, internado em medicina C num hospital central, por falta de camas em paliativos. Veio para controlo de sintomas. Dispneia, dor irruptiva e falta de apetite. Perda de filha há menos de um mês, chamada psicologia para controlo de ansiedade.

Senhor nega ansiedade, diz que necessita de mais oxigênio. É-lhe feita medição de saturação que se encontra em níveis considerados normais.

A intervenção inicia com uma abordagem mais superficial da anamnese, falamos da atividade profissional exercida, das visitas dos familiares. A medicação começa a fazer efeito e ele tranquiliza. Aos poucos e com a voz mais pausada e com menos dificuldade em respirar, falamos sobre outros assuntos.

Refere que se quer ir embora, que não está ali a fazer nada. Pergunto para onde quer ir? E ele responde que quer ir para onde nunca esteve e que como nunca na vida disse uma mentira, apenas não sabe. Pergunto-lhe:

-tem a certeza que em toda a sua vida nunca disse uma mentira?

-disse apenas duas. Uma foi agora e a outra foi quando disse à minha esposa que nunca a deixaria morrer no hospital.

-de certeza que deve ter dito mais, às vezes dizemos mentiras piedosas.

-não deixam de ser mentiras. Com a minha mulher, Deus quis mostrar-me que tinha mais poderes que eu. Tinha acabado de sair de ao pé dela, já tinha os papéis da alta assinados... foi só o tempo de ir buscar o carro. Quando cheguei, ela já tinha morrido, ali... quase à saída... mas ainda dentro do hospital.

-mas o que conta é a intenção, ela deve ter sentido que já estaria fora do hospital.

-nós assumimos que sabemos o que os outros querem, ou precisam, ou sentem. Você nem a conheceu, não estava lá. Morreu no hospital e ponto. Não me chame mentiroso (disse exaltado)

-tem razão desculpe

-não se aflija, não há nada que possa fazer, já sei. Só gostava que os jovens ouvissem mais os velhos. Quem melhor do que eu para falar do que sinto? Se falo sou agressivo ou estou ansioso, se não falo estou deprimido. Nem me deixam respirar... (silêncio) Quer saber outra verdade? Hoje vou morrer.

(Fomos interrompidos para lhe servirem uma refeição)*

-não diga isso, amanhã volto para conversarmos mais um pouco.**


Efetivamente faleceu nessa noite, esta é a história do Senhor que não sabia mentir.


*refeição- que ele como estava sem apetite, já tinha dito não querer.

** mais uma vez a sua voz não foi ouvida.

sábado, 17 de junho de 2017

Teresa, 76 anos.


Divorciada, juíza aposentada. Com cancro do pâncreas, desde 2011. Internada numa unidade de cuidados continuados, de longa duração, após transferência de uma unidade de paliativos.

Pessoa consciente e orientada, na própria pessoa e no tempo e espaço, sempre com a capacidade de decisão mantida. Após alguns dias do internamento, solicitou que lhe fosse dada autorização para casar. Pedido que a equipa considerou um pouco estranho, dado que a filha (única) e neta nunca falaram na existência desta vontade.

Ao conversar com ela, digo-lhe:

-amanhã virá o funcionário do registo civil, a fim de realizarmos o seu desejo. Mas se me permite perguntar... houve alguma aproximação com o seu ex-marido, recentemente?

- não... não é com ele que quero casar, já errei uma vez (ri-se)

- então apaixonou-se por alguém?

- nada disso, vou casar com um amigo que tenho.

- a amizade também é amor...

- vou casar apenas e só para que ele fique com a minha pensão, trabalhei demais, ganho bem, a minha filha Ana não precisa que eu já lhe deixo muitos bens, ela que os venda, se quiser.

- e ela aceita?

- que remédio tem. A vida ainda é minha. Que mande na vida da minha neta Vera.

- precisa que preparemos alguma coisa?

- eu só vou assinar um papel. Não preciso ir de lua de mel, até porque provavelmente morria antes de entrar no avião.

(Rimo-nos)

- é inocência minha associar casamento e amor, não os consigo ver de outra maneira, desculpe (digo-lhe eu)

- a vida ensinou-me que nunca ficamos com o grande amor, nem poderíamos.

- porque diz isso?

- o amor distrai. Se me tivesse permitido viver o meu, não seria metade do que sou. Um grande amor não se coaduna com as rotinas quotidianas, nem às convencionais 4 paredes.

- mas viveu assim um amor?

- sim, mas amar com aquela intensidade nunca pode ser duradouro, os maiores amores amam-se melhor à distância.


Silêncio


- posso pedir-lhe um favor? ( pergunta-me ela)

- sim claro

- aquele bloco que tenho, onde costumo escrever... quando morrer quero que me prometa que o faz chegar a quem eu indicar. Vou deixar tudo preparado.


Faleceu três dias depois desta conversa, e quando abri a mesinha de cabeceira encontrei um envelope fechado, com um nome e morada. Confesso que tinha curiosidade de o abrir, mas não o fiz. A pessoa estava a cerca de 40 km, entreguei-o em mão.


No destinatário apenas dizia "para o grande amor da minha vida: Isabel"

quinta-feira, 15 de junho de 2017

José, 75 anos.






Cancro do intestino, diagnosticado há 5 anos. Internado num estabelecimento residencial para idosos (ERPI), vulgarmente designado por Lar. Colostomizado, dependente total e a necessitar gradualmente de maiores cuidados de enfermagem.

Homem de intervenção, desde cedo envolvido em política, corporação de bombeiros e com um trabalho que adorava. Era electricista, responsável pelas primeiras iluminações daquela povoação. Costumava dizer que era conhecido por levar a luz às pessoas. E sim era uma pessoa de luz, que nos conquistava, sem percebermos bem o porquê.

A esposa, dedicada, vivia em função dele. Passava o maior número de horas possíveis ao seu lado, mesmo enquanto ele dormia, ela lá permanecia. Dizia-se que cumpria, ali, centro de dia.
As rotinas dos profissionais começaram a fazer parte das suas, usava os procedimentos de desinfecção e já sabia, diariamente, os produtos que eram usados e os hábitos de cada um. Percebendo que quem lá trabalhava usava socas, ela comprou umas pantufas que apenas usava ali. À chegada, ainda na entrada, trocava os seus sapatos pelas pantufas e seguia para o seu turno de esposa presente, que desempenhava como ninguém. Este casal era a personificação dos votos matrimoniais, “na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, até que a morte nos separe”…

O carinho que aquela família transmitia e a união que tinham, era algo intenso. Sentia-se com os poros da pele, a necessidade que tinham de estar juntos, cada um, individualmente, era forte… mas juntos… era como se deixassem as máscaras cair e ficavam frágeis, como se ao entrar... ali no quarto... e nos braços do pai, voltassem a ser crianças. Ele tinha o poder de iluminar o que de mais genuíno existia em nós (não fosse ele electricista). Uma vez disse-me gostar do meu casaco amarelo, que sempre que o usasse me permitisse ser feliz. Pois de nada servia vestir uma cor animada quando se tem a alma apagada.

Ele era um líder e foi, até ao fim, um resistente…. não deve ser fácil deixar para trás tanto amor.

terça-feira, 13 de junho de 2017

Manuel, 92 anos.


Viúvo e com “mau feitio”. Internado num hospital, após queda em casa, encontrado por vizinhos, no dia seguinte. 
A aguardar vaga para ingressar numa unidade de cuidados continuados, para manutenção. Diagnosticado com cancro na próstata desde 2012. Esposa falecida 2 meses antes do diagnóstico e filhos emigrados, um na Holanda e outro na Venezuela. Sem contacto com netos e sem irmãos ou sobrinhos por perto.
Recusou tratamentos, nunca tomou a medicação, refugiou-se no álcool. Em casa comia o que queria e nunca se orientou por um relógio ou televisão.
Apresentava sempre um discurso revoltado e era definido como agressivo. Nunca queria nada e recusava tudo o que lhe era oferecido para melhoria da sua saúde e qualidade de vida. Quando abordado começou por dizer que nunca iria comer a sopa porque há mais de 40 anos que não comia sopa, sempre a detestou. Foi-lhe perguntada a sua preferência alimentar ao que ele respondeu que ninguém cozinhava como a mulher dele. Pedi-lhe que me falasse nela e ele disse que não lhe apetecia falar, estava farto de gente que fala. Perguntei a alternativa, visto que não tinha forma de lhe adivinhar os pensamentos. Ao que após sorrir disse:
-Sabe, aqui ninguém quer saber os meus pensamentos. Todos me dizem o que é melhor para mim, mas só eu é que sei. Falam na qualidade de vida mas isto já não é vida.
-Mas tem dores?
-Não. Eu só quero sair daqui.
-Mas você em casa sozinho não está bem, vê como caiu.
-Se a menina doutora tivesse bebido o mesmo que eu, também não se aguentava em pé. E as minhas pernas não têm nada, são rijas como troncos (batendo com a mão em punho nas pernas).
-Mas você se for para uma unidade podem cuidar de si.
-Mas é isso, eu não quero ser cuidado, nem salvo. Todos os dias peço à minha mulher que me leve e desde que aqui estou nem isso posso fazer.
-Não pode?
-Não, porque ela morreu em casa … e é lá que está. É lá que me espera.
-Há alguma coisa que eu possa fazer por si? Que o ajude?
-Sabe cozinhar?
Acenei que sim
-Faça-me um prato de Bacalhau à Brás.
E assim foi, nessa noite comeu o bacalhau, após a colaboração de toda a equipa de serviço.
Faleceu 2 dias depois, no Hospital (a esposa sabia o caminho).

segunda-feira, 12 de junho de 2017

António, 87 anos.


Com cancro do estômago, diagnosticado há 10 anos, estádio IV- fase terminal, internado numa Unidade de Cuidados Continuados. 
Casado com Amélia, desde os 22 anos, 3 filhos emigrados e um neto que reside perto.
Numa das nossas tardes de conversa. Diz-me ele:
-Sabe, nesta fase da vida, pensamos naquilo que não fizemos, no tempo que perdemos e no que nos falta fazer. Trabalhei muito, se soubesse o que sei hoje, tinha saído mais. Ainda por cima nem os filhos tenho por perto.
-Tem o seu neto Pedro
-Pois tenho e é o meu orgulho, robusto como eu, pelo menos como eu era (ri-se) e gosta de comer bem. Também eu gostava, agora com este tubo nem sinto o sabor da comida.
-Às vezes as enfermeiras deixam-no comer um bocadinho para saborear, que eu vejo.
-Pois é, mas isso lá é comer? Eu sempre fui homem de prato cheio, podia fazer um roteiro dos melhores restaurantes de Portugal, de norte a sul conheço-os todos.
-Foi camionista, passou a vida na estrada.
-Sabe, eu não culpo este cancro… o tipo tinha bom gosto e eu ia-o alimentando.
(rimo-nos)
-O que vale é a boa disposição, não é Sr. António? Mas dizia-me há pouco que tem pensado nas coisas que não fez.
-Pois tenho e sabe o que gostaria? Sonhei ontem com isto, você é muito nova e não se deve lembrar… mas havia um filme em que o ator dançava na chuva e saltava a cantar o seu amor.
-sim sei
-nunca dancei na chuva, aliás toda a vida fugi dela. Sempre com pressa, detestava conduzir na chuva e agora penso que podia ter sido mais carinhoso e mais presente para a Amélia... Sempre foi uma boa esposa.
-isso é muito bonito, devia dizer-lho.
-para quê? Já não somos jovens… O tempo já não volta e a chuva.... agora... só a vejo da janela. Escreva lá isso e diga-lho você.

domingo, 11 de junho de 2017

Maria, 46 anos.



Diagnosticada com cancro da mama há 3 anos. Estádio de doença- terminal.
Fez todos os tratamentos possíveis e muito haveria para falar da doença, mas falemos da pessoa. Tem um filho de 7 anos que adora pássaros. Tem as paredes do quarto com muitos desenhos e entre eles têm o beijo secreto dos passarinhos, coisa que ultimamente já lhe custa a fazer, pelas dores e pelo emagrecimento. 
Maria faz-se de forte, mas aceitou a inevitável morte. Sabe que não terá dores, pois a equipa de paliativos a acompanha diariamente. O marido vigia-a no silêncio, preocupa-se com a toma da medicação, com a comida, com as compras. Tenta ter tudo organizado mas não quer falar, não consegue.
Maria sabe que Francisco ficará bem e que será uma criança feliz. Ela conta-lhe histórias de viagens, das pessoas que conheceu e do mundo que há para descobrir. Ele deita-se com ela e conta-lhe como foi o dia na escola.
-sabes filho, a mãe brevemente vai ter que fazer uma viagem
-e como vais? Já nem consegues sair da cama.
-vou com um grupo de passarinhos, pedi-lhes que me levassem
-vais com as andorinhas?
-sim meu amor, e vou ficar bem. Sempre que falares eu consigo ouvir-te
-vais voar?
-sim, o meu corpo está cada vez mais leve e eu vou voar
-Ok mamã, gosto muito de ti.
-E eu de ti amor.

sábado, 10 de junho de 2017

Apresentação




Como psicóloga e como colaboradora na área da saúde, decidi escrever sobre o meu quotidiano, sobre o sofrimento humano e também sobre a cura. Mesmo que essa cura seja a partida, pois a grande maioria dos cuidados são paliativos.

To care: no duplo sentido de cuidar e de se importar.

Também aqui o penso tem este significado duplo: o penso enquanto elemento que cura e o penso enquanto acto de pensar/ analisar a situação, neste caso a ferida.

Ferida como dor/ doença, que se sente no outro, na família que o acompanha, mas também na equipa que todos os dias lida com as suas próprias dores e medos.

Para refletir e, ao mesmo tempo, exorcizar os meus fantasmas, porque ter o privilégio de acompanhar os momentos finais de alguém, ser a pessoa que escuta, dá a mão ou realiza desejos, nos dá um legado demasiado valioso para não ser partilhado. Porque me faz sentir mais humana, mais frágil e vulnerável todos os dias, mas me dá um prazer imenso a cada nova vivência viver um sentimento de paixão e admiração com as histórias de vida de cada um. As narrativas biográficas são recheadas de aventura, romance, drama... é como ler um livro no olhar dessas pessoas. Aqui sou apenas uma redatora dessas experiências, com um pouco de mim à mistura, perdoem-me a incapacidade de ser neutra ou imparcial, mas muito do que transmito é mais sentido nos poros da pele do que no conteúdo das palavras. Há muitas conversas que são tidas no silêncio, num abraço ou num olhar e terei que usar frases para vos descrever a sensação.

Penso na ferida, um blog feito de sentimentos, com histórias fictícias, baseadas em factos reais.