sábado, 23 de setembro de 2017

Como explicar a morte às crianças...


Existiu, há muitos anos, uma mulher a quem o seu filho morreu, ela revoltada, gritou contra Deus, não aceitando essa partida.
Deus ouviu o seu grito e veio ter com ela. Aproximando-se disse-lhe:
-porque me chamas?
-estou revoltada, levaste o meu filho ainda pequeno (respondeu ela)
-sabes que preciso de anjos e ele não é propriedade tua.
-mas eu amo-o e não me consegui despedir. Podias ter levado qualquer outro.
Deus disse-lhe então que estava disposto a fazer um acordo com ela.
-se encontrares alguma casa onde ninguém tenha morrido, devolvo-te o teu filho.
Ela assim fez e foi batendo de porta em porta. Toda a gente havia perdido alguém, os pais, ou os avós, ou um tio, irmãos, mais filhos.
Ao ouvir esses relatos ela percebeu que não somos donos do tempo nem dos "nossos". Ela sentiu-se mais conformada ao ouvir perdas semelhantes e entendeu que Deus não pode escolher uns em vez dos outros, todos perderemos sempre alguém até um dia sermos nós a partir.

Conto antigo

Análise psicológica.

"Um dos requisitos para trabalhar em paliativos é ter uma personalidade estruturada. O técnico deve ter uma vida familiar satisfatória e preencher o seu dia-a-dia com coisas que lhe proporcionem prazer.  É preciso saber desligar do sofrimento."

Segundo estudos e recomendações da OMS. 

Pois bem, eu nunca fui muito comum, nem estruturada. Mas aprendi a encontrar neste trabalho algum dos meus prazeres da vida. Desde que nasci que convivo com a morte, sempre, desde que me lembro, sou filha de um pai não vivo. Uma presença inexistente e fantasiada. Que, para quem apenas resta a esperança e a crença de um sobrenatural, algo posterior, se torna uma fantasia agradável com que conviver. Tudo o que é imaginado é sobrevalorizado. E o humano é um ser de hábitos, os vícios mais não são do que hábitos que interiorizamos, rotinas, formas de nos estruturarmos. Aprendi a conviver com este mundo dos mortos, identificando aqui uma zona de conforto, mas este padrão não pode definir-me! Nao quando uso o sofrimento e a sua busca como um vicio, como um hábito. 
Preciso diariamente de me interiorizar, de me permitir a fuga... a saída desta realidade dolorosa. Só o consigo fazer encontrando sentido no sofrimento.
Tenho a sorte de possuir uma vida familiar mais que satisfatória e ter encontrado neste trabalho uma forma de revisitar uma parte de mim. Estar com eles e lidar com as suas perdas, faz-me ser confrontada com a minhas, e, pensar nas que me permanecem. Se por um lado, sofro, por outro, reconheço a sorte e valorizo quem tenho por perto e quem tive a oportunidade de conhecer. 
Somos o resultado das pessoas que amamos e das que perdemos. 
Obrigada!

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Change (Tracy Chapman)

Dignidade sempre!

A importância que damos às coisas depende não só do nosso estado de espírito, como também do estado de dependência. Nunca se dá valor ao gesto de coçar o nariz, como quando não se pode mover as mãos. Por vezes desvalorizamos pequenos comportamentos e valores, concentrados nas nossas actividades e tarefas. O tempo e o valor que atribuímos às ações são subjetivos da nossa capacidade. Imaginar que se tenha que defender dignidade em fim de vida, passa muitas vezes, por pintar as unhas a alguém que sempre o fez e agora não consegue. Passa por perguntar se querem apanhar o cabelo, ou tê-lo curto. Pequenos nadas, que para quem, mais nada tem... são tudo. Passamos uma vida a ser identificados pelo cargo social que atingimos, pela profissão e estatuto... E ali, numa cama de internamento, não passamos de mais um número no processo, de mais alguém com pijama todo o dia, ou vestida ao gosto (ou falta dele) de alguém, que, se tivermos sorte vem com tempo.
O meu papel muitas vezes é consciencializar para estas atitudes. Não concordo com a necessidade de sermos frios e distantes, tal como defendiam os entendidos há uns anos atrás, trabalho com pessoas e para as pessoas, não posso de modo algum esquecer o ser humano que existe. Como dizia Cicely Saunders "tu importas porque és tu até ao fim". O facto de ter, perante mim, alguém com aquela junção única de personalidade, irreverência, educação, história, experiências... é uma oportunidade única e cada pessoa é única e merece ser olhada e respeitada com essa personalização. Não desumanizem os cuidados, nem desprezem os afectos, porque no final... são a única coisa que nos resta.

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

A importância da comunidade e o desejo de morrer em casa.


A frase mais ouvida nas mulheres...


Se realizasse um estudo, diria que cerca de 80% das mulheres que acompanhei me disseram a seguinte frase:

                                    "se soubesse o que sei hoje, nunca me teria casado!"

Já os homens sentem imensas saudades das esposas e falam delas com carinho... isto faz-me pensar... por um lado acho que o facto da grande maioria delas, ter mais de 65 anos, relatam uma relação imposta e que serviu ou para fugir dos pais, ou porque estavam na idade... os motivos são variados e nunca falam em amor. Passaram vidas a ter filhos e sem conhecerem a pessoa com quem viviam, aliás chegam à conclusão que nem gostavam deles. Todas se arrependem do facto de quando se, finalmente, libertaram deles, ou já era tarde, ou estavam doentes. Nenhuma quer voltar a passar por isso, todas dizem que teriam mais liberdade, que teriam vivido melhor solteiras.
Eu gosto de acreditar no amor, na relação conjugal, não por dependência, mas por vontade de estar juntos, por partilha. E fico enternecida ao ouvi-las, entendo os seus motivos neste desabafo e penso que a sociedade felizmente mudou. Acho que na base está  a educação e a crença de que as mulheres deveriam servir os maridos, que necessitavam deles para criar família e ter alguma independência. A maioria descobriu que era uma falsa realidade, que são capazes de subsistir sozinhas, que aliás eles acabam por lhes gastar as economias e as tratar mal. Dessas, cerca de 50%, perdeu filhos pequenos, devido à precariedade de condições de saúde e higiene. São relatos de vidas sofridas, provavelmente serem solteiras tê-las-ia poupado a alguns desgostos. Muitas queriam ter estudado, mas o casamento era a única opção. Muitas foram manipuladas pelas mentalidades e mitos sociais, outras porque era a única forma de sobrevivência, mas ao ouvi-las de uma coisa tenho a certeza, nunca deixaram de sonhar. Nunca deixaram de ser elas, fizeram o seu papel o melhor que podiam e foram atrizes excepcionais, hoje, ali numa cama do internamento sentem-se livres, já ninguém é seu dono e senhor. Sonham como a vida teria sido sem a outra pessoa e a verdade é que percebem... bem no final da sua existência... que afinal nunca precisaram de ninguém, que a melhor companhia é a sua própria.

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Quando Vier a Primavera (Alberto Caeiro)


"How people die, remains in the memory of those who live on" Cicely Saunders


A pioneira e fundadora dos cuidados paliativos. Iniciou a sua obra como assistente social, tirou depois o curso de enfermagem e, mais tarde, o de medicina. A pessoa que congrega em si mesma, os valores de uma equipa multidisciplinar. No seu quotidiano laboral foi-se apercebendo que o cuidar não passa só pela parte física, também a social e espiritual devem ser tidas em consideração. Deixa uma obra que hoje se homenageia, um bem haja e muita admiração!

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Exercício: "Antes de morrer gostava de..."


Paula, 49 anos.

No quarto individual, da ala de medicina B, num fim de tarde.
A partir desta imagem, diga-me o que vê, que lhe apetece que escreva?
-pode ser uma carta? (pergunta ela)
-sim, o que quiser, pode ditar que eu escrevo (responde a psicóloga).



Olho esta imagem e penso em nós, sempre pensei que iríamos terminar os nossos dias juntos, sempre pensei que este fosse o nosso destino. Errei em por à prova o nosso amor, em testá-lo ao limite de o cansar. E tu partiste... Parti também para outros braços que me prometiam fugazes momentos e preenchimento temporário das minhas necessidades, dos meus objetivos. Não percebi que o temporário fosse tão pouco, não percebi que te ia perder definitivamente. E aos meses juntaram-se anos e sei hoje que este não é o meu fim. Não és tu quem me acompanha na vida, nem na morte. Tu não és mais que uma réstia de memória, que um dia se perderá. Quero que saibas que sempre nos imaginei assim. Tu e eu velhinhos com as nossas discussões filosóficas, tu mais prático, eu mais teórica, sempre nos completámos. Sempre fomos loucos um pelo corpo do outro, sei que contigo poderia contar em cada ruga dos nossos corpos, a história da nossa felicidade... hoje és apenas um futuro sonhado. Um arrependimento que me mata a cada dia, desculpa a burrice de te ter perdido, mas desculpa ainda mais por, sabendo disso, não ter lutado para te ter, nem que fosse uma vez mais... nem que fosse por um abraço... respeitámos os compromissos um do outro, a distância, a moralidade. Menti-me a mim, impedi-me de ser feliz contigo, substitui-te por pequenos prazeres e dores imensas. Fui tão burra, que pena a minha, faltou-me a coragem, aumentaram os motivos que nos separavam, em vez de nos unirem, e, a cada novo dia fui perdendo-te mais. Já não há nós, conscientemente acabou. Mas nos sonhos... é assim que imagino um fim para nós.

-quer que a dedique a alguém? (pergunta a psicóloga)
-não menina, fica para si. Espero que tenha alguém com quem terminar os seus dias.

Alguns filmes que aconselho (meu TOP 5).


segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Para sempre Alice.

Um excerto do filme, que mostra o sentimento para quem sofre de Alzheimer. Também as demências são hoje consideradas doenças do tipo paliativo, uma vez que não se prevê a cura e provocam a perda degenerativa das capacidades intelectuais e físicas.

Amélia, 54 anos.






Diagnosticada com cancro da tiróide há 4 anos, acompanhada pela equipa de ECCI, no domicílio. Solicitou acompanhamento espiritual e psicológico. Reside sozinha, nunca teve filhos e o marido abandonou-a no início da doença. Sem irmãos, sem retaguarda familiar.

“Numa sessão com o pároco:

-Sabe, eu preciso confessar-me, sinto que guardei dentro de mim demasiada revolta, as palavras doem-me e não me largam enquanto não as libertar.

-Fale à vontade (diz ele)

-Toda a vida fui ensinada a aceitar, a receber com fé o que a vida me dava, a ser respeitosa com o próximo, a ver as suas necessidades acima das minhas. Fui ensinada a não ser egoísta, a viver em função do outro.

-Essa é a doutrina cristã, meu anjo.

-Pois está mal. Arrependo-me de não ter sido mais feliz. Nunca quis ofender a Deus e ele faz-me uma coisa destas? Para que serviu a minha existência? Vida de merda.

-Sinto que está muito nervosa, os desígnios de Deus nem sempre se entendem, mas Deus escreve certo por linhas tortas.

-Linhas Tortas? Acho que são tortas? Pelo contrário foram linhas retas, sem qualquer emoção, sem qualquer sabor. Tomara eu ter partido um prato, ou a loiça toda. Nunca viajei, nunca me questionei sobre a vida, sobre as emoções. Levei uma vida sem sabor, casei com quem os meus pais indicaram, nem sei se o amei… Sabe o que preciso senhor padre?

-Diga…

-Reze por mim, mas mesmo como deve ser, porque nestes últimos dias tenho pecado em pensamentos como nunca e peça a Deus Nosso Senhor que se houver uma vida a seguir a esta, que me mantenha jovem e me perdoe mas vou querer compensar todo o tempo perdido. Se não aceitar estas condições, não vou para o Céu, prefiro o inferno.”

Ri-se às gargalhadas enquanto conta esta história à psicóloga. Escusado será dizer que o padre nunca mais lá voltou!

Foi feita a narrativa biográfica e, afinal, tinha tido bastantes aventuras. Partiu com a sensação de que validou a sua existência.